sábado, 28 de maio de 2011

ALFBETIZAÇÃO E LETRAMENTO ( RESENHA)

CARLA ADRIANA DE SOUSA BARBOSA



TFOUNI, Leda Verdiani. Letramento e alfabetização. 2. ed. - São Paulo: Cortez, 1997. - ( Questões da nossa época).


LEDA VERDIANI TFOUNI é linguista licenciada em Letras Anglo-Germânicas pela UNESP de Araraquara; Master of in Language Acquisition pela University of Califórnia, Santa Barbara, EUA. Doutora em Ciências pelo Instituto Estudos da Linguagem da UNICAMP e livre-docente pela USP. È atualmente professora associada do departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de São Paulo, campus de Ribeirão Preto. Tem vários trabalhos publicados ,dentre os quais : Adultos não-alfabetizados: O Avesso do Avesso (Editora Ponte), A Escrita: Remédio ou Veneno? In Alfabetização Hoje (Cortez) e Perspectivas históricas do letramento, in Cadernos de Estudos Linguísticos. Atua na área de alfabetização de adultos, através de estágio profissionalizante. Tem estágios de pós-doutoramento no exterior, realizados nas seguintes universidades: Università Degli Studi, Bologna, Itália; University of Sheffield, Inglaterra; Université Libre de Bruxelles,Bélgica, e Université de la Soborne Nouvelle, Paris, França.


Tfouni, em sua obra “Letramento e alfabetização”, procura explicitar concepções de alfabetização e de letramento e faz um breve histórico da escrita, o que a escrita representa para a sociedade e que ela está sempre ligada as relações de poder e como a escrita pode ser usada como objeto de desenvolvimento social, cognitivo e cultural dos povos.
Para a autora existem dois intendimentos para alfabetização: “um processo de aquisição de habilidades requeridas para a leitura e a escrita. Ela explica que do ponto de vista sociointeracionista, a alfabetização, enquanto processo individual, não se completa nunca pois a sociedade está em constante mudança. Tfouni mostra uma preocupação com teorias que veem a alfabetização como um processo definidos em objetivos de escolarização sem fazer distinções do ponto de vista ideológico. A autora menciona no seu livro Pierri Girroux(1983) para esclarecer a questão acima citada: sobre a a escolarização sem ressaltar o ponto de vista ideológico. Faz uma argumentação mencionando que embora a alfabetização tenha voltado a ser um item educacional posto em evidência, o discurso que domina o debate distancia-se de ama análise significativa da questão, representando um processo conservador.
O segundo entendimento para a alfabetização é como um processo de representação, que segundo Emília Ferreiro a escrita deveria ser usada como um sistema de representação que evolui historicamente e não somente como um código de transcrição gráfica, devendo assim, respeitar o processo de simbolização.
Segundo a autora, os estudos sobre letramento procuram examinar não somente as pessoas que adquiriram a tecnologia do ler e escrever, portanto alfabetizadas, como também aquelas que não adquiriram essa tecnologia, sendo elas consideradas “analfabetas”. Afirma Tfouni que existem letramentos de natureza variada, inclusive sem a presença da alfabetização. Para dar conta disso, a autora postulou, após discussões a respeito com Ginzburg, durante visita científica feita em Bologna, um “continuum”, que, pela própria natureza, opõe-se a uma visão linear e dicotômica, visto que encara as diferenças entre os níveis de letramento como sendo produzidas discursivamente, o que equivale a considerar que a relação entre “ser alfabetizado” e “ser letrado” não é de maneira alguma linear.
A autora deixa bem claro no segundo capítulo do seu livro, que não concorda com outras contribuições de conceito de letramento associadas (usadas como sinônimo) a alfabetização, pois Tfouni distinguem alfabetização e letramento e atribui ao letramento características mais complexas do que o domínio da habilidade de leitura e escrita. Entende por letramento um processo de natureza sócio-histórica: Enquanto a alfabetização se ocupa da aquisição da escrita por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade. Esse ponto de vista ela exemplifica apresentando três perspectivas sob o qual o termo literacy (vocábulo inglês) está associado ao letramento, onde as três perspectivas enfocam a concepção de literacy enquanto aquisição de leitura/escrita (codificação/decodificação) deixando de lado os aspectos sociais e culturais do letramento. Afirma que essas três perspectivas também poderiam ser colocadas a favor da teoria da “grande divisa” que propõe uma separação dicotômica entre usos orais e usos escritos da língua, ao mesmo tempo em que incorpora a interpretação (ideologicamente construída), segundo a qual as modalidades orais seriam “inferiores” às escritas.
Tfouni menciona STREET(1989) para explicar o que seria a “Grande divisa” e falar do “modelo autônomo” do letramento que se encaixaria na nova teoria da grande divisa onde esse modelo parte da suposição de que o letramento se resume a habilidades para leitura e escrita, e também que ele, por si próprio (ou seja, autonomamente), terá efeitos
nas práticas sociais e cognitivas. Do mesmo modo, assume que o letramento traz consequências sociais, como a “modernização”, o “progresso” e a “racionalidade econômica”, para citar apenas alguns aspectos. A autora relaciona dois exemplos de pessoas escolarizadas para exemplificar o que seria letramento e escolaridade, é apresentada uma carta de uma aluna universitária onde a mesma tenta expressar-se onde escreve valendo-se de um léxico que foge a linguagem cotidiana e assim acabou por transformar sua carta numa paródia, mostra nesse exemplo a falta de noção de discurso da autora da carta.
Analisando narrativas orais de uma mulher não-alfabetizada (Dona Madalena), Tfouni (1997) conclui que o sujeito, nessas narrativas, não é um mero eco de fórmulas pré-existentes. Ao contrário, ele está constantemente atuando sobre a estrutura linguístico-discursiva da narrativas, construindo efeitos de sentido que estão relacionados a sua (do sujeito) memória enunciativa, a elementos do interdiscurso e a mecanismos de antecipação (formações imaginárias) sobre necessidades virtuais do narratário – a pesquisadora denomina isso de “trabalho de autoria”. O trabalho de Tfouni(1997) tem procurado mostrar que a “autoria” parece ser o conceito mais adequado para lidar com essa hipótese de letramento /alfabetização. Trata-se de elucidar que, como já dissemos, ao contrário do que apregoam defensores da grande divisa, como Scholles e Kellog (1977), existe autoria no discurso oral de sujeitos não-alfabetizados. Na contramão, é preciso mostrar que o discurso escrito, muitas vezes, não está organizado dentro de um princípio de autoria.
Tfouni cita GREENFIELD (1972) para expor que, somente pessoas alfabetizadas apresentam habilidades como: abstração, simbolização e lógica formal. Cita também vários outros autores que afirmam que a diferença entre as sociedades letradas e as sociedades grafadas, está nos processos cognitivos e no desenvolvimento da lógica e que a língua escrita é o instrumento para o pensamento lógico, levando assim, o raciocínio lógico-verbal ou o silogismo, à materialização discursiva.
Tfouni cita Luria para fomentar seu comentário sobre o processo de produção sócio-histórica de sistemas de códigos. Ela aborda uma problemática a ser respondida: Se as pessoas não-alfabetizadas não “entendem” os silogismos, quais estruturas elas colocam no lugar? Para responder a essa questão Tfouni fez uma pesquisa de campo junto com uma analise dos dados onde procurava detectar lugares do funcionamento linguístico-discursivo dos adultos pesquisados. Essas pesquisas foi dado silogismos para que repetisse e eles acabavam repetindo em forma de narrativas que aparecem, então, como uma oposição, no discurso do não-alfabetizado, à organização lógica e formalizada do discurso alfabetizado, que se materializa no silogismo e no discurso científico. A autora também explica que os silogismos são a materialização das principais características atribuídas à escrita e ao letramento que é a descontextualização, a objetividade. Podemos fazer notar que,nos recortes das narrativas orais ficcionais da pesquisa, há um funcionamento em que vemos a utilização de um outro discurso, baseado em genéricos que perpassam o cotidiano dos sujeitos linguageiros (ditados, motes, ditos populares, slogans etc) e que são mobilizados por eles diante das lacunas de sentido presentes no silogismo. presentes na premissa maior do silogismo, cuja função é restringir o conhecimento, assim, fechar as perspectivas a partir se fala do objeto.
No último capitulo do seu livro Tfouni afirma que não existe coincidência entre o sujeito da escrita e o sujeito do letramento, ela explica que o sujeito da escrita é dominado por uma onipotência que produz nele um poder. Conclui no entanto que o sujeito do letramento não precisa ser alfabetizado. Ítalo Calvino é citado para falar da onipotência da escrita na escrita literária. ATTÉI (1989), diz que compara a escrita literária com a analítica, onde as duas se aproximam por meio de um paradoxo. Para Tfouni outro fator que dá a impressão de poder na escrita é “saber metalinguístico” , que teve seu aparecimento na escrita.
Através de tfouni podemos perceber que letramento não é só leitura e escrita associada a alfabetização, mas que devemos perceber os fatos históricos e socias do letramento. Essa obra é indicada para profissionais que atuam em sala de aula e que trabalham com a alfabetização de adultos não-alfabetizados, e também para motivo de pesquisa de alunos de faculdades.

sábado, 21 de maio de 2011

Narrador x Autor em Ataliba, o vaqueiro, de Francisco Gil Castello Branco *

Carla Adriana de Sousa Barbosa**
Layla Aristiany Nunes Maia
Raimundo Silva do Nascimento



Francisco Gil Castelo Branco nasceu em Livramento (município de José de Freitas) no ano de
1848. Foi diplomata, romancista, contista e contista. Formado em Letras (França), residiu no Rio de
Janeiro, onde foi colaborador de vários periódicos - Revista Luz, Gazeta Universal e Diário de Notícias.
Foi ainda cônsul-geral do Brasil em Assunção (Paraguai) e Marselha (França), onde faleceu em
1874.







Na literatura a utilização da linguagem sempre foi elemento determinante da caracterização da época, da região, do estilo e, principalmente, das personagens. No conto Ataliba, o vaqueiro, de Francisco Gil Castello Branco, cuja temática é a seca no interior do Piauí, há a linguagem do narrador e a das personagens. No que se refere à fala do narrador, percebeu-se traços tendentes ao registro da cultura, léxico e sintaxe lusitanos, senão européia, com a utilização de termos que, muitas vezes, o narrador deixa transparecer sentido ao próprio autor. Na fala das personagens há, por sua vez, uma tentativa de registro da oralidade e dos costumes empregados na época, enriquecida com o recurso muito frequente de onomatopeias.
O autor, como já dito, estabelece uma confusão entre sua fala e a do narrador. Essa afirmação é comprovada na fala da personagem Deodata, na qual o autor transpassa a influência lusitana por ele sofrida, o que se nota, por exemplo, nos diálogos entre Deodata e Teresinha, em que há uma aplicação da norma culta na construção frasal. Entretanto, no conto, Deodata é uma senhora de terceira idade, sem escolaridade, que reside no interior da província e não é dona da terra onde mora, não sendo a colocação pronominal enclítica e o uso do verbo na segunda pessoa usuais do povo daquela região e nível social.
“- Cala-te tola! Gritando, interrompeu Deodata (...)” (1994, p. 78)
“- Então, rapariga, que esperas? Estás cochilando? Tens medo de ir à cozinha? (...)” (1994, p. 83)

Ademais, no decorrer do texto, na fala do narrador há presenças de comparações baseadas mais na influência da cultura europeia que da cultura sertaneja da longínqua Província do Piauí. Veja-se as comparações feitas com um costume francês, um ponto turístico italiano e um instrumento musical do folclore e dança espanholas.
“Depois arranjou a rodilha na cabeça como um coque parisiense (...)” (1994, p. 45)
“Os cabelos... em cocoruto... inclinados qual outra torre de Piza (...)” (1994, p.47)
“(...) com um estrepitoso alarido, batendo castanholas com o dedo, sapateando ao redor do africano (...)” (1994, p.53)

Também, porque feito de forma idealizada, o narrador apresenta um perfil do sertanejo bem diferente da realidade, levando-nos a perceber a “romantização” dessa figura, o que denuncia o forte romantismo de Ataliba, o vaqueiro:
“Ataliba era moço, tinha a figura atlética e a fisionomia cheia de franqueza. O seu trajar caprichoso indicava desde logo que ele era vaqueiro e enamorado.” (1994, p. 43)
“Teresinha era uma morena sedutora. As suas formas, delineando-se em modesta saia de chita e os seios arfando sob alva camisa orlada (...). As tranças espessas, escuras e lustrosas como fios negros de seda (...)”. (1994, p.41)

Ainda é pertinente observar que Francisco Gil utilizou-se de estratégias como o lirismo, quer na comparação das sertanejas com as flores, quer no descrever o apego a terra, quer no dizer da falta de chuva:
“As filhas do sertão são como flores campesinas, a arte não lhes realça o valor (...).” (1994, p.41)
“Eram os últimos agregados da fazenda (...). A execução desse ato era para essa pobre gente um poema de heroísmo, em cada árvore, em cada pedra, em cada recanto dessas campinas desoladas deixavam uma reminiscência, uma saudade, um companheiro de infância – um pedaço d’alma!” (1994, p.71)
“Na alegria ou na dor dava curso aos seus sentimentos, traduzindo-os em versículos (...). Assim, de repente desabafou um largo suspiro dos pulmões e soltou a voz.” (1994, p.73)
Muitas vezes, são as onomatopeias e as cantigas que revelam um pouco do linguajar do narrador/autor, construindo musicalidade ao conto:
“– Té! té! té! té!...”
“- Gru gru gru gru! Gru gru gru gru!”
“– Coré!... Coré!... Coré!...” (1994, p. 59)
“(...) marchando ramram dos pandeiros, ao tilintar das violas (...)” (1994, p.62)
“A flor do – piqui – é branca,
do – bacuri – encarnada,
a flor do jambo é bonita,
mais bonita é minha amada” (1994, p.63)
Não se pode perder de vista que o que se quer averiguar aqui é, principalmente, de que forma o narrador se identifica no texto como o próprio Francisco Gil. No caso, o autor esconde-se atrás do narrador, e, encoberto por ele fala. Ou seja, escondido sob o véu do narrador e das demais personagens o autor de Ataliba, o vaqueiro pôde proferir o seu discurso romantizado, esquecendo-se, porém, disso, insistíveis vezes.
Assim, na tentativa de constituição de uma identidade regional, por intermédio de um discurso popular, a voz do narrador confunde-se, mas raro, com o pensamento e linguagem de um intelectual da época, indicando influências da formação acadêmica e da convivência com a cultura européia, mas ver que Francisco Gil era diplomata de carreira. Até mesmo pela falta de convivência direta com a realidade linguística do Piauí, faltou coerência entre a fala dele e das personagens, fictícias e reais, justificadas, talvez, pela distância geográfica e temporal. Francisco Gil, entre o autor e sua Província natal, imprime, pois, ao discurso do narrador, sua linguagem lusitana e sua visão de mundo eurocêntrica.

Bibliografia:
CASTELLO BRANCO, Francisco Gil. Ataliba, o vaqueiro, Hermione e Abelardo, A Mulher de Ouro. 2. ed. Teresina: APL/UFPI, 1994.
MOURA, Francisco Miguel de. Literatura do Piauí. Teresina: APL/BNB, 2001.
SAMPAIO, Airton. Ataliba, que vaqueiro!
TERRA, Ernani. Linguagem, língua e fala. São Paulo: Scipione, 1997.


Disciplina Literatura de Autores Piauienses - UFPI 2011/1

domingo, 20 de fevereiro de 2011

O SERTANEJO EM “VIDAS SECAS” DE GRACILIANO RAMOS

*Carla Adriana



O livro Vidas Secas de Graciliano Ramos retrata fielmente a realidade brasileira não só da época em que o livro foi escrito, mas como nos dias atuais tais como: injustiça social, miséria, fome, desigualdade, seca, o que nos remete a ideia de que o homem se animalizou sob condições subumanas de sobrevivência. A obra se classifica entre o conto e o romance e fala do drama do retirante nordestino diante da seca implacável e da extrema pobreza que o leva a um relacionamento seco e doloroso entre as personagens. Os participantes da história são: Fabiano o chefe da família, homem rude e que não consegue se expressar seu pensamento com palavras; Sinhá Vitória, sua mulher com um nível intelectual um pouco superior ao do marido que a admira por isto; O menino mais novo quer realizar algo notável para ser igual ao pai e despertar a admiração do irmão e do irmão e da Baleia, a cadela; O menino mais velho, sente curiosidade pela palavra “inferno” e procura se esclarecer com a mãe, já que o pai é incapaz; A cadela, Baleia, e o papagaio completam o grupo de retirantes, no romance; Representando a sociedade local, na história, estão o soldado amarelo, corrupto e arbitrário, impõe-se ao indefeso Fabiano que o respeita por ser representante do governo; Tomás da Bolandeira, dono da fazenda, onde a família se abrigou durante uma tempestade, e homem poderoso da região que impõe sua vontade.


CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA


Os abalos sofridos pelo povo brasileiro em torno dos acontecimentos de 1930, a crise econômica provocada pela quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, a crise cafeeira, a Revolução de 1930, o acelerado declínio do nordeste condicionaram um novo estilo ficcional, notadamente mais adulto, mais amadurecido, mais moderno que se marcaria pela rudeza, por uma linguagem mais brasileira, por um enfoque direto dos fatos, por uma retomada do naturalismo, principalmente no plano da narrativa documental, temos também o romance nordestino, liberdade temática e rigor estilístico.
Os romancistas de 30 caracterizavam-se por adotarem visão crítica das relações sociais, regionalismo ressaltando o homem hostilizado pelo ambiente, pela terra, cidade, o homem devorado pelos problemas que o meio lhe impõe. Graciliano Ramos (1892-1953) nasceu em Quebrângulo, Alagoas. Estudou em Maceió, mas não cursou nenhuma faculdade. Após breve estada no Rio de Janeiro como revisor dos jornais "Correio da Manhã e A Tarde", passou a fazer jornalismo e política elegendo-se prefeito em 1927.
Foi preso em 1936 sob acusação de comunista e nesta fase escreveu "Memórias do Cárcere", um sério depoimento sobre a realidade brasileira. Depois do cárcere morou no Rio de Janeiro. Em 1945, integrou-se no Partido Comunista Brasileiro. Graciliano estreou em 1933 com "Caetés", mas é São Bernardo, verdadeira obra prima da literatura brasileira. Depois vieram "Angustia" (1936) e Vidas Secas (1938) inspirando-se em Machado de Assis.



ANALISE E CARACTERIZAÇÃO DA OBRA

“Vidas secas” foi escrito durante a segunda geração modernista. A crítica literária classifica como uma obra regionalista e de denúncia social, a obra trata e configura ficcionalmente o sertão do Nordeste brasileiro. Narra a vida de uma família de retirantes da seca, descreve o ambiente hostil e a exploração dos donos de terra. O título do livro faz menção à secura presente em todos os espaços, desde a ambientação da caatinga com sua vegetação seca, amarela e cinzenta, ao pensamento das personagens, que se comunicam guturalmente como bichos, a animalização das personagens.
Na obra, observa-se também que as relações sociais são limitadas, esbarando sempre na animalização do sertanejo pela natureza, ironicamente a personagem mais humana na obra é a cachorra Baleia, ela adentra em todos os ambientes, intermédia a relação entre Fabiano e os dois filhos, mesmo quando morre permanece no pensamento do todos da família. O fato de ser uma obra regionalista não quer dizer que Graciliano Ramos sobreponha o aspecto da denúncia social a analise psicológica, ambos são divididos: à medida em que ele caracteriza as relações externas das personagens, fala também dos pensamentos delas, inclusive os de Baleia. O sertanejo de “Vidas secas” não é visto como pitoresco, sentimental ou jocoso, muito pelo contrário, as agruras do sofrimento causado pela seca o transformaram num ser à beira do sertanejo quase bicho, que não se lamenta, não fala, nem desiste de viver, porém esmorece como ser humano.
A narrativa do romance “Vidas Secas” é feita em terceira pessoa, predominantemente com o discurso indireto livre a fim de penetrar no mundo introspectivo das personagens, já que esses não têm o domínio da linguagem culta necessária para estabelecer comunicação. O romance “Vidas Secas” é dividido em treze capítulos os quais os mesmos se interligam, porém apresentam um caráter fragmentário, pois são postos como contos, episódios que acabam se interligando com uma certa autonomia. É uma obra onde as personagens não passam de figurantes em meio a uma condição de vida que se sobressai, na qual a história é secundária e o próprio arranjo dos capítulos do livro obedece a um critério aleatório. Em cada capítulo procura-se analisar as “pessoas” através de seu comportamento, que está voltado para a natureza e para os animais, já que existe uma fusão entre eles. Através de seus personagens Graciliano vai oferecendo aquele mundo complexo posto em voga pelo modernismo, isto é, o mundo debruçado nas surpreendentes galerias do espírito humano. Por isso, além de uma literatura social, o autor procura desvendar os mistérios que envolvem os seres humanos.
O livro tem um ciclo porque é aberto com o capítulo “Mudança”, em que eles estão na estrada e termina com “Fuga”, quando novamente eles vão embora. Dentro desse ciclo vários elementos mudam de lugar, inclusive os sentimentos das personagens, só o que não muda é a seca sempre castigando e maltratando o sertanejo, tanto na abertura quanto na finalização ela é brava do mesmo jeito não muda nunca .
Em “Mudança” os retirantes Fabiano, o pai, Sinhá Vitória, a mãe, os dois meninos, acompanhados pela cachorra Baleia e o papagaio de estimação atravessavam a caatinga. Desalentados pela seca, pelo sol forte, pela fome, pela sede, pelo cansaço de existirem seguem arrastando seus pertences por dentro dos leitos dos rios esturricados. As aves de rapina aparecem no céu, são urubus à espera de alguma morte. A natureza parece que encerra o grupo naquele lugar, porque o chão era seco tórrido, ao redor a caatinga ameaçava e no céu os urubus cercavam. Do segundo capítulo em diante as partes focam a vida de cada personagem interligando-as, forma-se uma rede de modo que descentraliza a atenção do leitor, já que não é dado privilégio. A linguagem é capaz de criar as situações para cada um, porém todos estão nivelados, afinal todos estão na mesma situação de abandono pelo Estado e privados de qualquer conforto, esse é o drama da narrativa em “Vidas Secas”. Coutinho (1978) afirma que:

Fabiano é obrigado a aceitar e transigir com as diversas condições que o mundo lhe impõe. Não pode comprar a cama de lastro de couro, única aspiração de Sinhá Vitória; não pode reagir à cobrança de impostos, manifestação imediata da ação de um governo do qual não participa e que lhe aparece como um fetiche exterior e distante; não pode se livrar da absurda prisão. (p.106)

O romance é estruturalmente fragmentado, inicialmente foi escrito como contos esparsos, somente mais tarde é que eles foram reunidos tornando-se um romance ou novela, a depender da classificação, entretanto esse aspecto não será alvo de nossa discussão aqui. O que une os capítulos é a paisagem que se torna o fio condutor a perpassar todo o enredo. As personagens do livro “Vidas Secas” são personagens rejeitadas pela natureza e pelas pessoas, não há a integração nacional, esse tipo de brasileiro não é aceito pelo ambiente físico nem pelo humano. Este é um dos pontos centrais da narrativa: a marginalização do sertanejo em “Vidas Secas”. Sendo que a natureza aparece no centro do romance como uma das personagens principais sempre ávida e seca, dividindo tudo, porque tanto o fazendeiro, quanto os moradores da cidade sofrem a seca, ela fragmenta em todos os níveis as relações na obra, tanto dos retirantes entre si, quanto do contato deles com o mundo. Álvaro Lins (1977) diz que:
 
O ambiente que os envolve tem qualquer coisa de deserto ou de casa fechada e fria. Nenhuma salvação, nenhum socorro virá do exterior. Os personagens estão entregues aos seus próprios destinos. E não contam sequer com a piedade do romancista. O Sr. Graciliano Ramos movimenta as suas figuras humanas com uma tamanha impassibilidade que logo indica o desencanto e a indiferença com que olha para a humanidade. Que me lembre só a um dos seus personagens ele trata com verdadeira simpatia, e este não é gente, mas um cachorro, em Vidas Secas. (p. 146)

Alfredo Bosi (1975) comenta que “Graciliano via em cada personagem a face angulosa da opressão e da dor. Naquele, há conaturalidade entre o homem e o meio; neste, a matriz de cada obra é uma ruptura” (p. 451). As personagens são figurantes em meio a natureza que devora suas vidas, como Bosi afirma a reificação do homem é tão intensa que se chega ao ponto de não haver diferença entre os objetos e as pessoas. Fazendo isso a narrativa rompe com uma tradição na literatura brasileira em que o homem sempre dominou a natureza, nesse casão a natureza acaba por dominá-lo.
No episódio do Soldado Amarelo, ainda no segundo capítulo, a figura do governo só ajuda a desagregar. Primeiro começa com o fiscal da prefeitura que não deixa Fabiano vender a carne de porco sem pagar imposto, depois com o Militar que considerou o fato de Fabiano ter se retirado da mesa de cartas uma ofensa, prendeu Fabiano, humilhou-o na cadeia. Em cárcere, durante a noite inteira, sua mente não se acerta, fica confusa, uma mistura de revolta e desalento, contudo mostra-se conformado com a surra. É possível ver isso na passagem seguinte:
 
Então porque um sem-vergonha desordeiro se arrelia, bota-se um cabra na cadeia, dá-se pancada nele? Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violências, a todas, as injustiças. E aos conhecidos que dormiam no tronco e agüentavam cipó de boi oferecia consolações: – "Tenha paciência. Apanhar do governo não e desfeita.” (RAMOS, 1977, p. 35)

Outro ponto a ser marcado é o capitulo “Inverno”, há uma preparação positiva para as chuvas, no entanto quando elas chegam a destruição não para, havia o risco de enchente e  precisariam fugir novamente e viver com os preás. Então, vê-se que o problema do sertanejo não é com a seca somente, mas com a natureza, fato que rompe com a harmonia romântica das representações naturais. Pelo contrário, a hostilidade da caatinga em “Vidas secas” só auxilia na fragmentação do ideal nacional.
Otto Maria Carpeaux (2000) marca a cisão feita por Graciliano entre a cidade e o interior, ainda que a caatinga hostilize os sertanejos na cidade eles sofrem ou sofreriam mais, porque é na cidade que estão todos os vícios e outros problemas sociais. Haja vista que Fabiano apanhou do Soldado Amarelo porque se desentenderam num jogo de baralho. No capítulo “Festa”, as personagens vão à cidade, participam da missa e Fabiano bebe em demasia passando por outros problemas.
Chegando ao penúltimo capítulo, “O mundo coberto de penas”, a presença das aves de arribação representava a aproximação do novo período de estiagem. Fabiano tentava matá-las atirando, porém em vão.  Era a luta contra o destino, contra a natureza cruel que o massacrava. Depois Fabiano vai compreender o porquê de as aves trazerem a desgraça. O que deve ser destacado aí é que a narrativa é dissonante da tradição na nossa literatura, ironicamente por causa de uma ave, “um bicho tão pequeno”, como diz Fabiano, a natureza criadora agora hostiliza o homem. Isso mostra o quão frágil é a relação entre eles, pois ela em todas as instâncias devora a vida.


APRECIAÇÂO

A estiagem que corrói a terra, levando à fome e à necessidade de migrar também domina a alma de cada uma das personagens. Eles não passam de marionetes de um grande sistema econômico do qual não conseguem escapulir e que os massacra sob diversos aspectos, da falta de dinheiro ao da carência total de perspectivas.
A vida nos campos brasileiros atualmente não é muito diferente da época de Fabiano. A seca continua o descaso político-social idem. Milhões de Fabianos ainda são explorados nas terras áridas do sertão, presos a contas que nunca terminam de ser pagas, vivendo à beira da miséria, humilhados, sofridos, assim como era Fabiano. Milhares de sertanejos fogem, a cada seca, para as mais diversas paragens, sem destino, seguido apenas de um fio de esperança, ou de desespero. E esse problema deságua na cidade, contribuindo para engrossar a grande fileira de trabalhadores desempregados e inexperientes que também acabam sendo explorado da mesma maneira que antes; ou talvez ainda pior, uma vez que ele está em território desconhecido. O Brasil precisa se dar conta de que está sendo construído um fosso alarmante entre o Nordeste e o resto da nação; entre a classe baixa e a alta e que, se nenhuma providência for tomada isso só tende a piorar. E será pior para todo mundo, pois cidade e sertão estão cada vez mais próximos, e mais íntimos. Seus problemas são os mesmos: fome, desemprego, miséria. “Vida seca” já denunciava isso há quase um século. Fabiano nunca foi ficção, nem sua história. Ela continua viva e jamais morrerá se não tirarem a máscara dos homens que governam esse país. O sertão precisa ser visto como uma oportunidade de mudança. A mudança do primeiro capítulo de Vidas secas.
Vidas Secas é um dos maiores expoentes da segunda fase modernista, a do regionalismo. Graciliano Ramos, ao explorar a temática regionalista, utiliza vários expedientes formais – discurso indireto livre, narrativa não-linear, nomes dos personagens – que confirmam literariamente a denúncia das mazelas sociais. O livro consegue desde o título mostrar a desumanização que a seca promove nos personagens, cuja expressão verbal é tão estéril quanto o solo castigado da região. A miséria causada pela seca, como elemento natural, soma-se à miséria imposta pela influência social, representada pela exploração dos ricos proprietários da região. Os retirantes, como o próprio nome indica, estão alijados da possibilidade de continuar a viver no espaço que ocupavam. São, portanto, obrigados a retirar-se para outros lugares. Uma das implicações dessa vida nômade dos sertanejos é a fragmentação temporal e espacial.



REFERÊNCIAS

BRAGA, Rubem. “Vidas secas”. In: Teresa, revista de literatura brasileira, São Paulo, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, n. 2, 2001. p. 126-129.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 2. ed. 7. impr. São Paulo: Cultrix, 1975.
CARPEAUX, Otto Maria. “Visão de Graciliano”. In: RAMOS, Graciliano. Angústia. 50. ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2000. p. 230-239.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura & Linguagem. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 36. ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 1977.